Eu quero falar e fazer outras coisas: o quão diferente ou complexa uma mulher negra pode ser?

Alyne Cristine
6 min readJul 6, 2021

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Quando eu era criança na escola particular — a única negra — uma professora também negra de outra sala perguntou o que eu gostaria de ser. Respondi “massagista”. Foi a primeira coisa que me veio a cabeça porque era algo que eu fazia muito bem — segundo meu ex-padastro e mãe — após um dia intenso de trabalho. Gostava de passar o creme na pele, sentir meus dedinhos apertando cada parte e ver a sensação de relaxamento. Optei por essa profissão também porque odiava matemática e não me achava boa o suficiente para outra função. Fora esse outro hobbie dentro de casa, recordo ter um kit de química para crianças onde podia experimentar diversas fórmulas e ver o resultado bem ali na minha sala. Hoje em dia já adianto que se perguntar o que lembro dos elementos da tabela periódica vou chorar. Outra coisa que gostava e adoro até hoje é assistir filmes, séries, ler biografias, conhecer histórias, inclusive, foi o que me levou para o jornalismo.

Fico pensando, eu era uma criança com tantos gostos, porque que virei uma adulta que a todo momento precisa se podar e focar unicamente em uma única temática ligada ao meu bem-estar profissional?

“O capitalismo né dãã, você precisa aprender um oficio e exercer até o final dos seus dias e se sentir insuficiente!”

Filme: “A íncrível Jessica James” da Netflix

Não tenho o que reclamar em termos de vida profissional. Finalmente sinto que tomei um rumo e me sinto confortável para me desenvolver, mas é visível a minha necessidade de falar e fazer outras coisas no dia a dia. O que parece é que quando você é um negro no corporativo seu papel é fazer bem sua função e entender de questões ligadas a diversidade, o que é algo que gosto de estudar, mas como ir além disso e sair dessa caixinha? Recentemente, quer dizer, não tanto porque estou lendo a passos de formiga na pandemia, especificialmente agora que estou no limite, comecei um livro da escritora americana Roxane Gay chamado “Má Feminista”. Puta merda, que mulher! Fazia tempo que eu não ficava meio que obcecada pela vida de uma escritora, mas ela me pegou justamente por ser imperfeita, chata, engraçada, ter experiências diferentes — e as vezes bizarra — sobre a vida profissional, pessoal e acadêmica. Em um momento do livro ela está te contando como participou de uma competição de conhecimento com amigos do trabalho, no outro contando como ela perdeu anos da vida jogada num sofá qualquer com uma pessoa que não gostava e em outro momento ela faz uma crítica extensa sobre Jogos Vorazes (livro e filme) e como ela se apaixonou pelo Preta, personagem apaixonado pela protagonista Katniss que possuía 0 habilidade de sobrevivência para lidar com os conflitos dos jogos.

Roxane Gay na foto de divulgação para o livro Má Feminista.

Gosto da Roxane, não só por ela ser o que é, mas porque ela vive sem se preocupar tanto com as expectativas em relação a ser uma mulher negra em sociedade, especificamente sendo mulher, negra, gorda e LGBTQ+. Num mundo em que nos dizer o que comer, o que vestir, com quem andar, para quem rezar, personalidades fora da curva são uma inspiração e tanto para sempre reencontrar quem nós e como nós podemos e devemos abraçar nossas esquisitices, gostos e vontades.

Ao longo dos anos, assistimos uma constante tarefa para grupos marginalizados destruírem estereótipos que ainda reforçam uma visão única sobre quem são. Recentemente, a jornalista brasileira Joyce Ribeiro lançou o livro sobre a vida da ex-escrava Xica da Silva, tão marcada por papéis em novelas e no cinema que a hiperssexualizavam, diga-se de passagem, onde mostra, por exemplo, que dos 14 filhos que gerou, ela fez questão de as filhas mulheres tivessem acesso e valorizassem a educação, mesmo num contexto no século XVIII. Eu não sabia disso porque até então, ela era apenas uma mulher negra que tinha saído minimamente da curva de exploração daquela época. Muito além de vaidosa, casada ou bonita, ela tinha uma visão que respondia aquele tempo e sabia o que representava ser uma mulher letrada. Joyce quis trazer um pouco mais de profundidade para uma figura que até então foi escrita por figuras não negras. Já questionou o grau de complexidade das figuras que você consome ou admira? Já se sentiu culpado por querer outras coisas para além do que aprendeu?

Zezé Motta interpretando Xica da Silva no filme “Xica da Silva” em 1976. A atriz contou depois de quase 40 anos que sofreu assédio durante as gravações.

O amor é tão importante quanto o saber porque essa também é uma tecnologia que sustenta nosso ser e possibilita alimentar muito do que nos foi tirado historicamente. Pra mim, o amor e o saber precisam estar lado a lado para que eu aprenda não só o que me fará sobreviver, mas o que ajudará a viver. Eu quero e preciso falar de outras coisas. Aquele papo de arroz e flores, sabe?

“ Mas é claro que mesmo quando se possui privilégios materiais, o amor pode estar ausente. E num contexto de pobreza, quando a luta pela sobrevivência se faz necessária, é possível encontrar espaços para amar e brincar, para se expressar criatividade, para se receber carinho e atenção. Aquele tipo de carinho que alimenta corações, mentes e também estômagos. No nosso processo de resistência coletiva é tão importante atender as necessidades emocionais quanto materiais.” Vivendo de Amor, Bell Hooks.

Lueji Luna no videoclipe do álbum “Bom mesmo é estar debaixo d’água”, 2020. A obra é marcada por falas sinceras sobre amor, afetividade, cura, pertencimento e autoconhecimento.

Revisitar o que gostamos e aprender coisas novas pode ser a possibilidade de subverter uma lógica economia que nos ensina unicamente a trabalhar, acumular meia dúzia de coisas e conhecer a pessoa certa para fazer família. Que que eu tenho diante disso e que posso esperar para mim mesma? Num país que nos mata por ser quem somos, buscar de maneira digna a felicidade — não aquela do comercial da margarina ok — é uma forma de resistir. Não posso viver aqui achando que um dia alguém como eu terá o privilégio de fazer o que quiser como andar no mercado de chinelo sem ser julgado como ladrão, eu preciso criar formas de minimamente trazer minha humanidade e gozar a vida.

Isso entra uma questão profunda sobre amor e vulnerabilidade porque você admitir que tem medo de ser julgado a todo momento ou deslocado também é demonstrar para o mundo que a qualquer momento uma dessas feridas podem sair pus, sangrar de novo ou infeccionar. É justamente assim que me sinto, por exemplo, quando preciso lidar com mais um caso de violência contra negros enquanto trabalho e faço reuniões com pessoas majoritariamente branca. O que também, mostra a importância de ter grupos de apoio, mesmo que a distância, onde posso jogar tudo o que estou sentindo e parcialmente absorver e entender o que aconteceu. Aprender a dizer o que sinto é algo que aprendi com mulheres, sobretudo negras, que também estão passando por um processo de conhecer os próprios limites e tarefas consigo mesma para priorizar. Felizmente, meu trabalho, vida pessoal giram em torno de mulheres como eu, Roxane e tantas outras em busca da própria identidade mesmo sob a mira de tantas camadas opressoras. NOVAMENTE, a mulher, a minha senhora Bell Hooks:

“A mulher negra descolonizada precisa definir suas experiências de forma que outros entendam a importância de sua vida interior. Se passarmos a explorar nossa vida interior, encontraremos um mundo de emoções e sentimentos. E se nos permitirmos sentir, afirmaremos nosso direito de amar interiormente. A partir do momento em que conheço meus sentimentos, posso também conhecer e definir aquelas necessidades que só serão preenchidas em comunhão ou contato com outras pessoas.”

O que sobra pra Alyne que queria ser massagista? Um passo de cada vez, já que o mundo não posso e não preciso abraçar. Só preciso me certificar de que estou exercitando o amor para além da lógica ocidental comigo mesma, comunidade e família e entendendo a minha complexidade com gentileza e paciência, principalmente.

“Continuarei escrevendo sobre intersecções como escritora e professora, como mulher negra, má feminista, até deixar de sentir que o que desejo é impossível. Não quero mais acredita que esses problemas sejam tão complexos que não consigamos dar sentido a eles.” Roxane Gay.

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Alyne Cristine

Jornalista, fã de comunicação e audiovisual, hard user das redes sociais, analista de social selling numa multinacional de beleza e suburbana convicta